O Cão do Pastor
Não se pode classificar o Mestre Nizier Anthelme Philippe como fundador, sucessor, nem como tendo pertencido a qualquer Ordem iniciática antiga ou recente.
Todavia, seu impacto sobre algumas das figuras de proa dessas Ordens foi certamente considerável.
Citaremos como lembrança os mais conhecidos, Papus, Paul Sédir, Marc Haven, Phaneg, Jean Chapas etc. Estes sim, participaram em graus diversos de organizações iniciáticas da época, Martinismo, Maçonaria, Igreja Gnóstica, O.F.B. etc.
No entanto, por meio dos documentos que pudemos consultar, temos fortes razões para pensar que não se tratavam se não da parte visível do iceberg. Um número considerável de ocultistas, espiritualistas, pesquisadores e políticos o consultaram, em graus diversos. Cremos que ele possuía uma estranha faculdade.
Quaisquer que fossem o meio ou as circunstâncias que o conduziam a agir, ele se lhes manifestava. Para os cuidadosos lyoneses, era um “curador”, é preciso dizer, fora do comum. Para os homens de fé, um santo. Para seus inimigos, um feiticeiro alcoólico. Para os ocultistas, um taumaturgo. Para os políticos, um agente secreto. E para os jogadores de bola de gude da Praça Bellecourt, um agradável parceiro.
Chegamos até mesmo a consultar um documento que faz referência a ele, em sua juventude, em Lyon, como uma espécie de radiestesista incomparável para encontrar papéis ou objetos perdidos. E era, em geral, extremamente raro que cada uma dessas pessoas ou desses meios tivesse a mínima ideia de suas atividades afora. Ele manifestou desde a infância os mais estranhos dons e poderes incomuns.
Durante anos, por ocasião de diferentes estadas em Yennes, pequeno vilarejo da Savoia, perto de seu local de nascimento, Loisieux, fizemos enquetes sobre sua juventude. As testemunhas diretas haviam desaparecido, mas subsistia ainda entre alguns dos descendentes trechos de histórias e algumas lendas.
Por exemplo, a efetiva cura das dores de cabeça que ele fazia unicamente com sua presença. A bola de fogo que acompanhava a Eucaristia na hora da Comunhão etc. Uma lenda relata que ele estava em comunicação com um reino subterrâneo estranho sob o Mont du Chat. No que nos diz respeito, pensamos que ele foi uma criança como as outras, muito amado, numa família piedosa e unida. Sem dúvida alguma, se tivessem desejado, seus irmãos teriam dito mais a respeito. Um destes últimos, Benoît, professor num vilarejo vizinho, era ele próprio uma personagem muito estranha. Ele estava em verdadeira osmose de espírito com o Mestre Philippe. Outro de seus irmãos só falava dele depois de tirar o chapéu... É, ainda assim, coisa rara nas famílias.
As histórias sobre o Mestre Philippe abundam e, como sempre, cada qual só retém o que lhe interessa ou o confirma em sua via. Nossa proposta neste artigo não é a de recapitular estas últimas.
Reteremos simplesmente este primeiro fato. Ele nascera com esses dons. Possuía os poderes que manifestou plenamente no decurso de uma precedente e extraordinária vida, como o livro de Marc Haven deixa suspeitar, uma herança familiar de uma missão particular de reabertura do “Livro da Vida”? Outras tantas pessoas, encontros e, como sempre, outras tantas opiniões.
Por vezes ele se concentrava um instante; pedia ao céu ou, por vezes, segundo sua fórmula, ocorria-lhe de dizer “agrada-me que...”; ele rezava, seguindo as formas mais clássicas, o Pai Nosso e a Ave Maria. Ele só se referia ao Evangelho, ao Pai ou a Cristo.
Tinha lugares de predileção aonde gostava de ir e meditar, não muito longe da pia de água batismal, na entrada da Basílica de Fourvière, em Lyon. Numa velha capela, dedicada a Santa Filomena, subindo em direção a Fourvière, na margem da estrada. Mais estranhamente, quando estava de passagem por Paris, no cemitério próximo à antiquíssima Igreja St. Pierre de Montmartre, perto de um jazigo de Cristo. Ele era um bom cristão, jamais criticava as instituições ou as pessoas, mas, tanto quanto sabemos, não manifestava um amor imoderado pela Igreja.
Fora da calma propícia ao recolhimento e à prece, penso, contudo, que esses comentários são uma fraquíssima percepção de seu verdadeiro trabalho, a parte emergida de sua passagem por este mundo.
Muito jovem ele dá sessões de cura em Lyon, seguindo nisso um método particular, ultrapassando amplamente o quadro do simples magnetismo curativo. Isso poderia ser expresso em algumas frases, edificantes a mais de um título sobre a validade e eficácia do poder. “Recebi o poder de comandar...” “...eu vos afirmo que tenho um grau que me permite perdoar as faltas.”
Sem cessar, voltava aos ensinamentos dados nas sessões quotidianas, insistindo na humildade, na prece e no amor ao próximo, sem os quais qualquer tentativa de curar os doentes permaneceria inoperante no tempo.
Ele assumiu, no entanto, aulas, de uma relação completamente relativa com as ministradas por Hector Durville, em Paris, sobre um magnetismo muito particular. Ele próprio jamais utilizava os passes. Suas aulas eram ilustradas por experiências surpreendentes. Mergulhava-se verdadeiramente num outro mundo em que o milagre era constante: com demonstração física a cada instante daquilo que fora antecipado.
Na aula de 26 de dezembro de 1895, na qual 75 pessoas estavam presentes, nota-se a experiência seguinte: “Vou pegar uma quantidade considerável de fluido magnético numa região que vós não conheceis”.
“Vou torná-lo tangível, quer dizer, sólido, e vós vereis assim como eu e sentirão tanto quanto eu! É feito no mesmo instante.” Todos os assistentes declaram distinguir perfeitamente o fluido na mão do Mestre. “Vou lançar esse fluido no gelo que está à vossa frente; vede e ouvi.” No mesmo instante um terror indescritível toma conta dos assistentes, um homem recebe o fluido em pleno peito, o que lhe ocasiona uma sufocação próxima da asfixia.
O mestre diz, então: “Vós só podereis fazer essas coisas mais tarde, mas quero ensinar-vos as operações a fim de que vós possais fabricar fluidos magnéticos, com substâncias vegetais.” “A Artemísia, a dedaleira etc., são plantas magnéticas. Quando se fazem passes, se as temos nas mãos, isso aumenta a quantidade de fluido.”
Notemos ainda estas poucas indicações: “É preferível cuidar dos doentes antes do levante ou depois do poente do sol. À noite é melhor.”
Entregou-se, do mesmo modo, a diferentes pesquisas concernentes a arcanos médicos e com esse feito ocupou cargos em diferentes laboratórios. O mais conhecido situava-se à Rue du Boeuf, na Croix-Rousse. Possuímos pouquíssimas informações sobre essas atividades e sobre os resultados subsequentes.
Que saibamos, somente André Savoret retomou esses trabalhos e aperfeiçoou alguns remédios.
Encontravam-se no meio deles outras pesquisas sobre o ácido láctico, assim como o famoso soro “Héliosine”. Resultava da ação prolongada do cloreto de sódio sobre uma matéria rica em queratina.
O doutor Emmanuel Lalande (Marc Haven) conhecia, sem dúvida alguma, o conjunto dessa farmacopeia. Possui-se uma carta que ele endereçou a Papus sugerindo-lhe a montagem de um laboratório espagírico, em associação, como o que Jolivet Castelot se animava.
Sempre se manifestaram, fora da iniciação, seres particularmente dotados.
Sem procurar estabelecer uma primazia ou uma hierarquia entre uns e outros, o que é, entretanto, notável, quase que único aqui, é a extensão e a qualidade dos poderes manifestados por esse ser. Verificamos cuidadosamente durante anos a autenticidade dos fatos relatados. Comparamos com outros homens dotados de poderes e devemos dizer que os seus continuam a ser um enigma que desafia a razão. A ascese, até mesmo a santidade. Sem dúvida. Porque eles são da ordem da Fé, da Graça ou do Mistério.
A conclusão que disso queremos deduzir é de que existem poderes de uma ordem infinitamente superior, agindo por intermédio de palavras simples e quotidianas, tendo como centro a humildade e o amor.
Mas estamos aqui, a mil léguas das litanias dos Deuses, das magias e dos saberes, e nem todos podem tomar emprestada essa via. Atemo-nos, no entanto, a assinalá-la. Nem exotérica, nem esotérica, como uma espécie de piscadela de um humor colossal que Deus nos dá de tempos em tempos, modificando todas as nossas lógicas, todas as nossas construções e nossos esquemas, liberando, de alguma forma, a Força das tiranias e das “passagens obrigadas” onde pensamos tê-la avistado de relance ou coagido.